sábado, 5 de janeiro de 2008

Doutores de palavras




O utente comum vai ao hospital e diz ao médico (após horas de espera com alguns "desabafos" pelo meio por se ter esquecido de marcar consulta) "doi-me aqui, Sr. Doutor.", e a partir daí cabe ao médico fazer o diagnóstico preciso para não ocorrer nenhuma "fatalidade".


É isso que nós, tradutores, fazemos ao texto, perguntamos-lhe o que quer dizer, como se sente com aquela tradução, sentimo-lo, e fazemos o diagnóstico na esperança de não nos enganarmos.
- Em que curso estás?
- Línguas Estrangeiras Aplicadas.
- Aaaahh, e isso dá para quê?
Dá para tratar palavras, meus caros. Será que pensam, enquanto leitores comuns, ao ler um livro, sobre o que é que o autor pretendia com aquela frase precisa? Às vezes sim, outras vezes não (não faz falta, entende-se pelo contexto), outras vezes NUNCA. Nós sim, pensamos nisso, TEMOS de pensar nisso, não podemos simplesmente saltar uma frase à frente porque não gostamos do que o senhor ou a senhora estão p'rali a dizer ou porque tem uma referência cultural que nem nos apetece muito procurar. Já pensaram que, só se calhar, lemos obras primas de literatura porque alguém as traduziu para uma língua do nosso conhecimento? Já pensaram que médicos, arquitectos, engenheiros, e todas essas profissões muito mais sonantes e reconhecidas que o modesto tradutor, tiveram, nalgum momento da formação deles, que ler um que outro livro traduzido para poder fazer ou entender aquela cadeira? Já pensaram?


Na minha humilde opinião de projecto de tradutora está mais do que na horinha de pôr isto a andar! Acabamos a licenciatura e somos tradutores? NÃO! Somos licenciados em Línguas Estrangeiras Aplicadas, não somos profissionais reconhecidos. Bolonha trouxe alguma coisa de substancial ou mesmo nova ao curso? NÃO! Antes pelo contrário... menos formação durante a licenciatura, mais propinas para o mestrado. O nosso nível de exigência no ensino superior é suficiente? NÃO! Ainda há muito boa gente a passar a cadeiras "porque se esforça" ou "porque teve problemas e não pôde estudar". Temos pena, e desculpem a insensibilidade, mas é assim. É por estas e por outras que há muitos pseudo-profissionais no mercado de trabalho a não desempenharem as suas funções como deveriam. "A culpa do ensino estar assim é do governo", claro que é, mas também parte de nós, Zé-povinho, fazer com que as coisas mudem, por pouco que seja... tudo começa nalgum sítio.


Já foram feitas teses sobre o assunto, mesmo análises contrastivas entre cursos e universidades que nos dão o atestado de "insuficientes" a nível de formação(além de outras informações http://isg.urv.es/cttt/cttt/research/dias.pdf é um exemplo); temos escassas possibilidades de fazer uma pós-graduação na nossa área, normalmente voltamo-nos para a área da Linguística, à falta de coisa melhor sempre é interessante; a nossa formação tem graves lacunas, nem sequer temos contactos com outras áreas da tradução, apenas a escrita; no ranking de universidades lá se vê uma pegadazita do nosso Portugal (não procurem nos lugares cimeiros); não temos bolsas nem "para a cova de um dente", comparado com a vizinha Espanha devemos ter um terço das bolsas (isto a arredondar muito por cima); qualquer Sra. Amélia ali da esquina pode traduzir, porque, segundo ela "eu estive na França quando o meu Zé andou na tropa e ia todos os dias ao pão. Ai que bem eu falava francês... Era uma baguette, silbuplé."; posto isto pergunto-me o seguinte: porquê ficar?


Desculpem o pessimismo, mas hoje apeteceu-me...

2 comentários:

Clara disse...

A culpa é de facto do governo, deste e dos anteriores. A política do "facilitismo" rege o nosso ensino, pelo menos, desde 1992, data em que se proibiu o chumbo dos alunos que estivessem a iniciar o 2º ou o 3º ciclos. O "povo" faz o que se lhe pede e quem quer ser/fazer de forma diferente é "ostracizado" pelos colegas e pelos alunos. Ser professor e querer ensinar são, nos dias que correm, dois conceitos irreconciliáveis. O meu conselho, como profissional do ensino, para os alunos é que não confiem no sistema e, se querem aprender, sejam autónomos e procurem fora da escola a formação que esta não lhes pode dar. Infelizmente a educação está bem longe das escolas e do Ministério da Educação: está nos livros, nas pessoas com valor, na história, nos monumentos, na experiência de vida de cada um. Não desanimem, procurem outras fontes de saber. Parabéns por este blogue que pretende pôr em causa questões que afectam a nossa sociedade e não se limita a "carpir" as próprias mágoas dum crescimento juvenil.

Sara disse...

Muito bem ;) concordo completamente!

Nós somos sempre os ignorantes que foram para letras porque não percebemos nada de matemática! Enfim...
Continuem a acreditar que a vizinha que "ia muitas vezes ao pão" lol (adorei esta!)é a tradutora ideal...
Porque hoje tivemos "PGI" (Princípios Gerais de Interpretaçao)... Gostava de saber como aqueles senhores do parlamento europeu (é um exemplo) se desenvencilhavam com a vizinha!

Parabéns Filipa.

Bjinhos